ENTREVISTA A JOSÉ GABRIEL PEREIRA BASTOS

(Antropólogo - FCSH/UNL)

Que função desempenha o sonho no ser humano?

Eu diria que o sonho é aquilo que é mais especificamente humano, mesmo que para isso eu tenha de reduzi-lo a uma categoria de acto que recusa a realidade. Portanto, o sonho é a actividade do espírito que nos quer libertar do fracasso, da frustração, da decepção, da impotência, e que mostra que nós somos um animal inconformista, um animal revoltado. Poderíamos usar várias expressões filosóficas para descrever o humano mas não o hommo sapiens sapiens, que é isso que não somos. Teorias como o empirismo, o racionalismo, o pragmatismo que se baseiam na apologia do progresso, da razão, da ordem negam isso, As teorias românticas, como o neo-romantismo que hoje é transportado pela psicanálise e pelo marxismo, são teorias do Homem dramático, do Homem revoltado, do Homem inconformado com a exploração do Homem pelo Homem, da mulher pelo homem, com a injustiça, com a humilhação, com o racismo, com o preconceito, etc; são teorias do Homem inconformado com o seu próprio recalcamento, ou seja, com a impossibilidade de sentir, de viver, de pensar, de ser agente, de ser autêntico, de tér uma identidade pessoal, de correr riscos em nome de si próprio... Deste modo, o marxismo e a psicanálise sãó, para mim, as correntes modernas que continuam a exprimir a problemática do Homem inconformado. Foi nessa acepção que Edgar Morin propôs que se alterasse a designação de homo sapiens sapiens para homo sapiens demens. O sonho é o demens e é o demens que é a parte realmente humana do Homem, é o acto louco. Louco quer dizer que nós temos que viver fora do real porque temos uma alma tão sensível, tão vulnerável, tão traumatizável face a realidades que podem estar tão fora de nós como a morte, ou biológicas como a doença, o envelhecimento, a decrepitude, ou de outras coisas que vêm das relações inter-humanas: o racismo, a opressão, crianças a morrer à fome, genocídio, tortura, actos terríveis que os Homens podem fazer alguns muito visivelmente terríveis, outros disfarçadamente terríveis, organizadamente terríveis que magoam tanto que nós desejaríamos que o mundo fosse qualquer coisa que não é. Posto isto, o problema é que nós vivemos entré o que há e não gostamos e o que não há e queríamos que fosse, ou seja, temos ideais, protestamos contra a realidade e inventamos outra porque queremos fugir à angústia. E o sonho é a forma que os humanos têm de vencer a adversidade.

Poderíamos dizer, então, que “o Homem é o lobo do Homem”, que é intrinsecamente mau, e que o sonho serviria como um escape à monstruosidade dos seus próprios actos?

Eu não diria isso. Diria que essa dimensão existe, e não é bom negá-la, diria que o Homem é um animal em sofrimento, em ferida aberta, que gostaria de sarar as suas feridas através do amor, do abraço, da família, da arte… somos um animal ferido que gostava de se curar, mas quando procura curar-se magoa e é magoado novamente. O Homem é um animal à procura de salvação, à procura de paz, de realização; mas não temos salvação possível. Na minha perspectiva, a vida do Homem é estruturalmente dramática e problemática. Somos a única espécie problemática que se pode auto destruir; exactamente porque se quer salvar.

Se o sonho é, como disse Frédéric Gaussen, “a expressão mais secreta e mais impúdica de nós próprios”, se ele é de tal forma individual e subjectivo, poder-se-á fazer uma análise dele com exactidão científica? No fundo, pode a psicanálise aspirar a ser uma ciência?

Eu poria a questão ao contrário, perguntaria se alguma disciplina, com excepção da psicanálise, pode fazer uma análise cientifica do sonho. Eu diria que a biologia não pode, a neurobiologia cerebral também não e que eu saiba nenhuma outra das restantes escolas psicológicas o fazem. A psicanálise é uma disciplina estrutural-dinâmica, que parte de observações sobre indivíduos para criar um modelo da vida mental, um modelo com dimensões colectivas, políticas, históricas, económicas, eróticas, agressivas, militares, artísticas, enfim, todas as dimensões, sem excepção. O que é necessário saber é com que modelo é que pensamos a pluralidade de acções humanas, desde a tortura ao genocídio, à arte, ao tocar violino, ao fazer amor, ao casar, ao ir para padre, tudo o que o Homem pode fazer em qualquer parte do mundo. Portanto, o que Freud criou é uma antropologia geral, distinta da antropologia geral científica de Marx. E, para mim, o ideal seria conjugar Freud e Marx, encontrar o encaixe justo entre essas duas teorias, e então teríamos uma teoria praticamente completa, uma teoria estrutural-dinâmica da História, da dramaticidade, etc. Mas o que é que eu quero dizer com uma teoria estrutural-dinâmica? Quero dizer que, neste caso, estamos a dizer que a alma é estruturada e que existe uma articulação entre a organização da mente e a organização do mundo. Aqui damos ênfase ao facto de a mente, por sua vez, estar articulada com o soma, com o organismo, com as necessidades orgânicas, com os impulsos agressivos, com os impulsos eróticos,com a fome e com outras sensibilidades mais. Portanto, o que se trata de obter é uma teoria da articulação estrutural-dinâmica entre o soma, o psiquismo e a sociedade e entre outras actividades ainda como as artísticas e as religiosas. Esta teoria geral está em Freud; certo ou errado, ele construiu um modelo. Agora eu diria que ciência, por definição, é um acto da vida mental que propõe modelos sobre o real que podem ser contrapostos a outros modelos. Dito de outra maneira, para mim, o espaço da ciência é um espaço de proposta, de um mercado mental de modelos em que o Freud entra e propõe o seu modelo, e eu estou à espera de que outras pessoas entrem e proponham modelos que me permitam dizer “deito fora o de Freud e fico com o do senhor Silva”. Uma segunda característica da ciência é que ela se contrapõe sempre à visão ideológica do mundo, à visão popular e à visão imediata e perceptiva do real. E cada vez que alguém produz ciência o mundo levanta-se contra ele — aconteceu com Galileu, Kepler, Darwin, Freud, Marx... Porquê? Porque, exactamente, o desejo mais genérico dos Homens é viverem em estado de ilusão. Os Homens precisam de compensações, o mundo é duro para com eles, os Homens são um animal que protesta, não querem, inventam ilusões, compensações drogas, álcool, raves, rock in rio’s, sexualidade, garotas, cama, discotecas, futebol, televisão, quinta das celebridades, polifica-espectáculo, Santana Lopes, missas, paróquias imensas distracções para ver se não dói tanto. Portanto, quando alguém propõe uma visão científica do real em Ciências Sociais essa visão é sempre chocante. Nesse sentido eu diria que, claramente, temos todos os indicadores da cientificidade da psicanálise e temos todos os indicadores da alienação de disciplinas como a psiquiatria, que se dizem científicas mas não o são. Porque servem apenas para criar um efeito de Lexotan [análogo ao Prozac ou Valium, contra a ansiedade, que produz um efeito tranquilizador em quem o ingere pelo qual se diz que 3% das pessoas são malucas e tu és racional. Claro que isto é óptimo para os restantes 97%...

Acha que a religião pode ser encarada como um sonho ou um delírio colectivo? Como um “ópio do povo” que, inserindo o Homem numa estrutura simulacral e ilusória, concede-lhe o escape da dura realidade?

Marx, nesse texto, vai ainda mais longe e afirma que o Homem não tem realidade. E nãõ tem realidade porque os dominadores, os exploradores retiraram a realidade ao Homem proletário, para que ele não se revoltasse. Ora, eu tenho todos os dados como antropólogo para dizer que Marx estava errado e que essas problemáticas não têm apenas que ver com sociedades com Estado nem com sociedades capitalistas. Porque o que é facto é que sociedades de caçadores-recolectores de cinquenta pessoas no meio da selva têm tudo isso e, no entanto, não têm judaico-cristianismo, não tiveram igrejas católicas, não tiveram repressão institucional, etc. As trevas não são trevas; pelo contrário, são luzes. Dito de outra maneira, o Homem gosta muito de ver luzes em caleidoscópios e de inventar caleidoscópios e de ver luzes bonitas. As religiões são luzes bonitas que também servem para certas partes mais angustiadas da humanidade dominarem outras partes que lhes causam angústia. Quando se vai ver quem são essas partes, os angustiados são os Homens de uma certa idade, e as pessoas que lhes causam angústia são as suas mulheres e filhos, A religião também serve para os homens angustiados e fragilizados criarem uma estrutura de dominação sobre as suas próprias mulheres, que podem estar a dormir com outros homens, sobre os seus filhos que lhes podem desobedecer os homens estão a envelhecer enquanto os filhos estão cheios de força, uns estão na fase de abertura outros na fase de fechamento e decrepitude. A religião foi, assim, (e há provas disso) inventada pelos homens mais velhos, ao aperceberem-se de que, através dela, podiam dominar os outros homens.

Isso poder-nos-ia levar à questão do falocentrismo e da dominação que ele vem exercendo em toda a nossa história ocidental.

Isso não tem que ver com o falos, tem que ver com a fatta dele (risos). Os homens velhos não têm fatos, têm o pénis dependurado e frouxo e as mulheres não querem dormir com eles, querem dormir com equivalentes aos filhos. A criatividade humana é uma resposta à vulnerabilidade identitária e a angústia que ela provoca nos sujeitos que a têm. Os sujeitos mais vulneraveis são os homens. Todas as pessoas que querem o poder quanto mais o querem mais vulneráveis se tornam. O poder é uma posição instável e falsa.

Francis Fukuyama afirmou que o “fim da história” incluiria um fim das ideologias. Ainda há espaço para a utopia, para o sonho utópico, num mundo cada vez mais a-ideológico, cada vez mais embrenhado na “era do vazio”?

Acabas de demonstrá-lo. O que o Fukuyama nos está a propor é o sonho dele, sem qualquer realidade dentro. O que ele está a propor é uma utopia, não tem qualquer realidade dentro e não vai acontecer. O que vai acontecer, por razões estruturais-dinâmicas, é que o Homem, sendo um ser ferido, vulnerável, dramático, problemático, sempre porá em perigo ele próprio e os seus semelhantes, porque está em guerra consigo próprio e com os outros. Portanto o que teremos nunca será a paz por mil anos, só um Napoleão ou um Hegel diria uma coisa dessas, e o Fukuyama é apenas mais um, mas debruçando-se sobre a globalização. Os Homens estarão sempre a organizar novos delírios, novos grupos, novas identidades e a contrapô-las a outras fazendo guerras, ensaios de dominação e tornando-se vulneráveis através disso, e recomeçando um ciclo entre gerações, entre sexos, grupos, etnicidades, classes sociais, entre benfiquistas e sportinguistas… querendo sempre chegar a qualquer coisa onde não chegarão e andando à paulada, ou com medo de a levar, porque outros não gostam da sua identidade. Dito de outra maneira, uma coisa incontornável é que estás sozinho. O Homem é o único animal verdadeiramente sozinho, e nunca deixa de estar sozinho, nem na cama. Estás condenado à solidão e a tua alma sofre com isso. Platão falou disso quando falou do ser primordial, que era redondo, tinha quatro pernas e quatro braços e depois alguém o cortou ao meio e as duas metades passaram a vida a tentar reencontrar se para criar o círculo perfeito, a totalidade. Isso em psicanálise é chamado “princípio da conservação do psiquísmo”, ou seja, tu conservas-te na tua vida mental comparando todos os estados pelos quais passaste, e como alguns estados pelos quais passaste são melhores do que a tua actualidade, tu tens nostalgia do teu paraíso perdido que foi o útero da tua mãe, o ninho que ela te deu, e a ilusão de que eras o centro do mundo. As mães dão aos bebés a ilusão de que eles são o centro do mundo, e isso torna-nos egocêntricos, etnocêntricos. Desta forma, mesmo Freud, mesmo o maior teórico continua a ser um sujeito de ilusões. A vida psíquica é estruturada de tal maneira que tu tens vários sujeitos dentro de ti, e o sujeito que age na inveja, o sujeito que age no futebol, na política, é o sujeito da ilusão, é o sujeito do sonho. Há uma ânsia de sonho, há uma ânsia de encontrar, há uma esperança. Eu penso que mesmo a pessoa mais lúcida, lá no último canto da cabeça, o que ela tem é esperança, o que ela tem é sonho. Esperança da redenção, da salvação, da plenitude, do encontro. O que se exprime no sonho é o sujeito dramático, em busca não consciente da realização disfarçada de desejos recalcados. O que se transmite no sonho é a revolta, o que o sonho faz é a desobediência em busca da salvação, ou seja, é o inverso da ideologia que afirma que é na obediência que está a salvação. Ideologia cristã, onde se preconiza obediência ao plano de Deus; ou ideologia burguesa, baseada numa obediência ao Estado: pagar os impostos, cumprir os horários, ser metódico e pontual. O que a alma diz no sonho é “não me impedirão de procurar a salvação”.

O sonho pode ser, assim, perigoso, na medida em que vai contra a imposição de modelos comportamentais rígidos, porque vai contra o controlo político do Homem. Perigoso porque liberta.

Se um dia chegarmos à situação em que os biólogos nos impedirem de sonhar, o controlo político da Humanidade está garantido. Só que as últimas experiências biológicas provam que um Homem que não sonha enlouquece. Dito de outra forma, para se levar os Homens a obedecerem incondicionalmente ao Estado será necessário enlouquecer a humanidade. Criar-se-ia um mundo de psicóticos e não um mundo de cidadãos.

Um mundo como o de “1984” de Orwell.

Exactamente.

[Entervista por Paulo Barcelos. Originalmente publicado no “Nova em Folha” – Jornal da Associação de Estudantes da FCSH, #36, Novembro de 2004]
http://rebeldia2.blogspot.com/2005/03/entrevista-jos-gabriel-pereira-bastos.html

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